A culpa. Mas ela nunca é nossa?
- HP Charles
- 9 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de abr. de 2024
Já repararam como a tendência que possuímos em nos sentirmos culpados por algo é inversamente proprocional à assumpção de que ela é realmente nossa? Ou sequer pode ser nossa? A infalibilidade parece ser um processo muito mais simples e cômodo para adequarmos à nossa psiquê.
Fazemos isso o tempo quase todo porque culpa é foda. Quando fiz análise, minha analista uma vez me disse: “Beto, 90% das pessoas que sentam aí onde você está sentado o fazem por um motivo apenas…culpa”. Nunca me esqueci daquilo.
Hoje, tendo estudado a quantidade de filosofia e psicanálise diária a que tenho me imposto, visando minha nova formação, tendo a compreender muito melhor o que Sônia me disse décadas atrás.
Vivemos em uma sociedade onde assumir responsabilidades pessoais se tornou um fardo e quase uma vergonha. Acreditamos que merecemos mais privilégios, nos convecemos de nossas próprias justiças em inconformidade e contraste com as crenças dos outros, nos tornamos obcecados em ter razão, fugimos de nossos erros profissionais e afetivos, tudo isso para evitar a culpa. É preciso mostrar as virtudes. É preciso garantir que saibam que está tudo dando certo. Mesmo que claramente não esteja, pois é a VIDA de que estamos falando.
Em pessoas saudáveis, culpa gera luto. E luto causa dor. Não queremos sentir dor apesar dela ser componente fundamental do crescimento. E então pulamos fases. Saltamos a história, nossa própria história. Porque com as redes sociais além de omitirmos nossa culpa, precisamos repassá-la. Existe toda uma questão de reputação que usamos para lucrar, para criar miragens, para contarmos as narrativas como elas nos interessam. Descobrimos que com a velocidade hodierna, poucos ligam os pontos, as maiores novidades e tragédias são substituídas em 48hs. Há estudos sobre isso.
Ao entendermos melhor a psicanálise, visualizamos o processo obssessivo que nos impomos em relação a diversos aspectos em nossa vida. Vamos usar como exemplo nossas relações afetivas? Como toda obsessão compulsiva, ela será extremamente debilitadora e, via de regra, terá impactos extremamente negativos, não apenas na relação, mas na vida em geral.
Criamos nessas relações imagens intrusivas, temores e solicitações que não são desejadas, gerando sofrimento inevitável. Tais pensamentos produzem um “inimigo interno”, que interfere em nosso cotidiano, atacando valores e bem-estar.
Pensamentos intrusivos normalmente estão conectados a comportamentos obssessivos, como já foi dito, e tais comportamentos funcionam como rituais que nossa psicologia usa para tentar neutralizar o medo e as consequências de tais ideações catastróficas. Metaforicamente funcionariam como a auto-administração de ansiolíticos. Dessa forma, tais “rituais”, ou abluções comportamentais, reduziriam nossa ansiedade e, com sorte, nossas culpas.
Notem, estamos cuidando aqui de pessoas minimamente sãs, aduzirmos culpa a mitômanos, sociopatas, a pessoas com transtorno de personalidade, impenderia uma abordagem totalmente diferente, pois para isso seria necessário se falar em empatia ou pelo menos menos em seu espectro. Em pessoas com tais transtornos, esse condão seria transposto, sublimado, quiçá, inexistente. Não há que se falar em culpa em quem jamais a sentirá, pelo menos não suficiente para assumir responsabilidades.
Teorica e ironicamente, a ansiedade seria reduzida com a aplicação dos rituais anteriormente citados, mas quando os mesmos são aplicados a fim de reduzir ou desconstituir os efeitos nocivos das obsessões causadas pelos “pensamentos intrusivos”, ocorre o oposto. Elas aumentam. Em frequência e nível de sofrimento.
Dessa forma, a obsessão compulsiva alimenta a si mesma e aqueles mesmos pensamentos recorrentes e aqueles mesmos rituais defensivos, ao invés de minorados, são potencializados.
Sendo assim, obsessões religiosas, sexuais, afetivas, que se encontram em TODOS os lugares, são um padrão disfuncional de tentar lidar com as tragédias cognitvas com que lidamos frequentemente.
É absolutamente simples e conveniente traduzir e relacionar tais obsessões a antigas relações, a presentes relações, vez que tais “pensamentos intrusivos e repetitivos” se misturam com a forma como você enxerga suas relações e parceiros, mesmo em diferentes contextos e experiências.
Então culpamos nossos pais, culpamos nossos parceiros íntimos. Tais contemplações e juízos se tornam crônicos, desabilitadores, limitadores, pois guarnecem a relação obsessiva compulsiva.
Obsessões e compulsões que possuem conexões com relacionamentos são naturalmente centradas em tais relações. E isso ocorre porque pessoas DUVIDAM. Duvidam de si mesmas em intermináveis questionamentos, se tornando super vigilantes, suspeitando de tudo, criando ideações paranóicas, ciúmes doentios, dirigidos normalmente a si próprias ou a seus parceiros.
E então duvidam de seu amor ou do amor de seus amantes, maridos, namorados. E piora, pois o que se segue é a dúvida de que se essa relação vivida é a correta. Nesse sentido, aquele mesmo pensamento repetitivo, embebido em culpa e cicuta, tenta “se assegurar” constantemente de que o sentimento experimentado é o apropriado.
A patologia formada então chega às vias do abuso a fim de testar a resiliência do parceiro àquela dúvida e sentimento construído justamente naqueles malditos pensamentos que jamais parecem de dissipar. Será mesmo que aquele sentimento é incondicional e comprometido o suficiente? E décadas se passam. E obviamente nada muda. Não sem tratamento. Não sem reconhecimento. NÃO SEM DESEJO.
E então o próximo passo é elocubrar se é justa a tentativa de encerrar a relação. Mas a ansiedade faz a pessoa permanecer na relação, o problema é que tal dilema não dirime se há ajuda naquela mesma ansiedade ou se apenas causa uma nova assombração na relação. As dúvidas e a ansiedade aumentam. Então, entre a cruz e a calderinha, tudo se torna quase impossível vez que entre a inquietação do abandono e compulssão obssessiva dos pensamentos intrusivos se cria um xadrez perverso e dolorido.
Um novo ingrediente é introduzido no “jogo” e ele se traduz na reasseguração constante dos parceiros no sentido de seus comportamentos habituais. A paranóia está instalada. O processo de culpabilização então se torna intenso, busca por falhas, vulnerabilidades, condutas duvidosas. Onde fica o espaço para a busca da bondade na relação? Para o prazer, para o afeto, para a união? Ela se perdeu ao longo do caminho, não? “10 anos de amor são transformados por 10 minutos de ódio”.
Então, esse tipo de pessoa vai focar inevitavelmente no pior que o outro tem a oferecer. Ou ele é todo bom ou todo mal. E isso é o comportamento obsessivo gritando. O foco será sempre nas falhas, haverá uma persecução maligna em PROVAR que o parceiro é fundamentalmente mau. E pior, fundamentalmente mau para aquele parceiro que tanto procura as falhas.
Não há mais nenhum tipo de esforço ou direcionamento a não ser em encontrar os defeitos no parceiro. “Ora, que péssima escolha fiz. Quanto tempo perdi”. E é cristalino que a intimidade já se foi, que nada mais vale a pena.
Parceiros com sintomas de OCD terão uma enorme dificuldade de criar relações sem o ingrediente do controle doentio. E a relação vai falhar em algum momento. É como um bomba relógio. Há muita culpa, há muito resgate na relação infantil entre pais e filhos provavelmente, há perspectivas que não foram atendidas. Talvez flagrantes de infidelidades ou abandonos.
Muito mais poderia ser escrito sobre o tema, mas esse texto busca apelar ao leitor sobre a natureza da culpa que todos carregamos sobre nós e sobre a importância de nos responsabilizarmos sobre ela a fim de projetarmos um processo de cura e perdão pessoal. Culpar os outros é fácil. Atribuir nossas omissões, nossos pecadilhos, nossos crimes morais, nos blindarmos ao luto, aos processos internos compensatórios, nos tornamos mais humanos e empáticos, assumirmos e lidarmos com nossos egos e talvez com “falsos egos”, seja o começo de uma vida realmente melhor. Pelo menos mais real. Matéria é só matéria. Mas alma…é outro assunto, não? Assim como o amor não “acontece”, ele é contruído, as culpas também precisam ser digeridas e reconhecidas. Todo o resto será anestesia. Vício. Ilusão. Prazer fugaz. Não há fuga. Há apenas comprar mais tempo. Um tempo que não volta.
E então? Como você tem dormido?