Pradaztki ou Neymar?
- HP Charles
- 25 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 3 de mar.
“As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e não vivem sem elas. Constantemente, elas dão ao irreal, a procedência sobre o que é real; são quase tão intensamente influenciadas pela mentira como pelo que é verdade. Tem uma evidente tendência a não distinguir entre as duas.”
Sigmund Freud
Será que alguém aí, sem pedir ajuda ao Dr. Google, seria capaz de dizer o que possuem em comum os sobrenomes Pradaztki, Taketani e Silva? Lógico que não. A pergunta é quase retórica.
Mas e seu eu lhes disser que são heróis brasileiros. Heróis mesmo, de verdade. Daqueles que arriscaram a própria vida para salvar a de outros. E aí, lembraram? Já ouviram falar? Nada? Ninguém se arrisca? Foi o que pensei...
E se eu disser Neymar? Fácil, né? Todo mundo sabe. Esse abençoado, agraciado pelos deuses, esse “herói”, é nome fácil na boca de toda a nação. Todos o conhecem, sabem o que fez e o número de sua camisa.
Neymar não salvou ninguém. É um abastado jogador brasileiro. Se não fizesse tantos gols, ninguém morreria. Talvez um infarto fanático acometesse algum torcedor canarinho, mas fora isso a vida seguiria. Famílias não seriam guilhotinadas pela tragédia de um pênalti perdido. As lágrimas que cairiam dos olhos vítreos, hipnotizados pela anestesia de alguma competição do esporte bretão, se enxugariam rapidamente. Sem maiores consequências. A cerveja ainda seria bebida e o churrasco também seria comido. Não haveria tragédia nenhuma. Chamariam de tragédia. Mas apenas por concessão semântica. Pela mesma concessão que se faz ao chamar um jogador de futebol ou uma celebridade qualquer de herói.
No dia 1 de fevereiro de 1974, o Brasil vivenciou uma das maiores tragédias de sua história. O Edifício Joelma lambeu em chamas, causando a morte de 188 pessoas e ferindo outras 300. Muitos desses óbitos foram oriundos de pessoas que optaram por se jogar de alturas invencíveis a fim de não sucumbir por morte supostamente pior. Entenderam o sentido mais apropriado da palavra tragédia? Dezenas e dezenas de seres humanos morrendo queimados ou politraumatizados, se constitui em uma tragédia. Ser eliminado em uma competição de futebol, não. Ser eliminado de um programa eivado de desimportância e de figuras grotescas, não. Não é mesmo, Bial? Lembram? Desagradável, triste, lamentável? Talvez, para quem realmente se importa. Aliás, alguém ainda assiste?
E quanto ao “heroísmo”? Transposto o emprego hiperbólico e vagabundo da palavra, me digam qual o heroísmo existe em se chutar bolas bem chutadas? Qual o real perigo existe ali para o nossos espartanos de chuteiras? A bola possui pontas envenenadas? Se a pelota entrasse crianças morreriam? A “honra da pátria” estaria maculada? Ah, a glorificação da insignificância. "Vai, Gabigol, chuta de direita, pow!"
Pois me permitam fazer a distinção. O prédio localizado na Avenida 9 de Julho, 255, não possuía heliporto. Todas as pessoas que, desesperadas, buscaram o ponto mais alto do edifício, se depararam com uma laje e telhas de amianto. Um resgate aéreo teria que ser simplesmente inventado naquele local. Tudo pesava contra, se mostrava inapropriado. Mas para a sorte de muitos, a equipe do helicóptero UH-1H da FAB, decidiu por desafiar o improvável e consolidar uma tarefa quase suicida. Não havia margem para erros.
A aeronave pilotada pelo Major Aviador Pradatzki, pelo Tenente Aviador Taketani e pelo Sargento Silva, se embrenhou na ação desesperadora que resultou no salvamento de inúmeras vidas. Algumas delas deixaram o edifício agarradas aos “esquis” da nave, como se imitassem um filme de Hollywood. Essa era a situação encontrada pelas equipes de salvamento. Caos.
Esse helicóptero foi o único que teve participação “efetiva” na retirada das pessoas do teto do prédio. Entretanto, muitos outros heróis se constituíram na ocasião. Seria injusto, pelo que li, não fazer essa ressalva. Heróis paramédicos, heróis bombeiros, heróis voluntários, heróis anônimos, que naquele tenebroso dia, resolveram arriscar a própria vida em detrimento a de tantos outros. Não ficaram famosos, não recebiam salários milionários para colocarem suas existências em risco e nem fizeram o que fizeram porque estava em jogo o “orgulho da nação”. Fizeram porque foi preciso.Fizeram porque se não o fizessem, gente morreria asfixiada ou carbonizada.
Escrevi todos esses parágrafos porque, francamente, me incomoda um pouco a distorção em que vivemos por conta de como a tradução da fama e do heroísmo se apresenta hoje, e que na realidade possui é fito de lucro financeiro e político e nada mais. Como se não bastassem as isenções fiscais concedidas a instituições bilionárias, à revelia do bom senso e das prioridades, bem como foi a construção nababesca de estádios em locais indiscutivelmente inapropriados, ainda se vulgariza, por via oblíqua, o heroísmo de tantos em nossa história, para conceder tal título a alguém que está longe de sê-lo. "Heróis do BBB".
É de bom alvitre lembrar que Neymar nada tem a ver com isso. Pelo menos não o vi abraçar a alcunha ou colocar a coroa. Mas, a bem da verdade, também não o vi rejeitá-la, como tantos outros entronados pela política, pelo esporte e pela internet. Vejo capitalizações, drama, vitimizações como arma de marketing. Me solidarizaria com tais "heróis" se houvesse um problema de doença, ou algo impeditivo para seguir a vida. Ao que tudo indica, não há. O que dizer então dos tantos sem moradia, muitos outros liminarmente retirados de suas residências para atender a demandas e interesses políticos. O que se diria dos 49 milhões de brasileiros sem saneamento básico? Como é lindo o pão e circo.
E o que falar dos milhares na miséria, sem escola ou educação, que vivem de salário mínimo? Esses não serão lembrados ao fim do Carnaval, do BBB, de qualquer evento midiático de grande proporção, já sabemos. O choro dessas pessoas não remontará a heroísmo ou virtude, mas ao enorme problema social que vivemos. Então, por obséquio, não vamos chorar por nossas celebridades. Elas estão bem. Foram demitidas da Globo? Que tragédia.
Mas para quem faz questão de chorar ou encontrar heróis de verdade, basta procurar nas páginas de nossa história. Nela encontraremos professores brilhantes, cientistas e médicos revolucionários, profissionais das mais diversas áreas que, ao arrepio da própria vida, se dedicaram a de outros. Não veremos louros em suas cabeças, não serão glorificados pelas arquibancadas, não os veremos descendo de luxuosos carros para ir de encontro a uma multidão de microfones e holofotes, mas isso só os torna mais heróis e não menos.
Vestindo suas capas de invisibilidade, disfarçados nas salas de aula, enfurnados anônimos em laboratórios, escondidos na insalubridade de nossos hospitais, teimosos mortais produzindo riqueza para os abastados, esquecidos no quintal de nossa grande nação, se encontram nossos verdadeiros artilheiros.
Apenas eles podem mudar o jogo, vencer o campeonato, perpetuando o gol salvador. Um gol sem narração inflamada, ou seguido de comentários com voz emocionada, flébil, um gol sem “tira-teima”, apenas porque não precisa.
Há um Neymar dentro de campo que nunca foi herói. E havia um Pradaztki na cabine do helicóptero. Ambos tiveram sucesso no que empreenderam e foram importantes em suas tarefas. Mas apenas um é HERÓI. Lembrem-se disso.
O Brasil carece desesperadamente de heróis e exemplos. Mas é preciso saber quem é quem de verdade. É necessário começar a reescrever nossa história. E talvez ela precise começar a ser reescrita não do Planalto, mas de uma humilde sala de aula qualquer.
Lindo texto Beto, para nós que crescemos com dois herois da educacao, sabemos exatamente o significado do que é ser herói no Brasil.