
A fileira de carrinhos
- HP Charles

- 2 de mar. de 2024
- 2 min de leitura
Minha mãe me dizia que uma das coisas de que mais gostava em minha infância era de enfileirar cuidadosamente carrinhos Matchbox, clássicos dos anos 70 e 80, para então, com um tapa, repentinamente desfazer todo aquele trabalho de forma aparentemente arbitrária.
Não me recordo totalmente desses momentos, mas sempre tentei compreender porque me pareceriam tão importantes. O que o menino sabia que o homem vivido e experiente de hoje não vislumbra?
Pelo que me foi dito, eu era capaz de passar horas entretido tentando posicionar os carros perfeitamente um atrás do outro, para-choque com para-choque. Mas aquilo parecia por fim me irritar, e eu mesmo desfazia a fileira abruptamente. No entanto, logo depois voltava a sorrir e outros pensamentos e atividades se apoderavam de mim.
Fui me deitar pensando em tais lembranças e curioso com tal atitude da qual eu mesmo não me recordava. No meio da noite, ao acordar para beber água, consegui decifrar o enigma que me levava quando criança a estabelecer aquele padrão enigmático.
Meu desejo e esforço de perfeição em enfileirar os carros talvez fosse o resultado simbólico de ressignificar os carrinhos em algo que fizesse sentido em minha vida. Tentar alinhá-los, seria alinhar meus pensamentos juvenis e meu ego ainda não totalmente formado. Cada carro representaria minhas atividades e relações interpessoais com meu cotidiano e minha família.
Então, ao mesmo tempo que parecia me dedicar ao enorme trabalho de encontrar a perfeição naquela carreira de brinquedos, percebia que isso seria impossível e logo a desfazia com alguma frustração, para depois voltar a sorrir e me divertir em seguida, feliz.
O que descobri como menino e que havia me esquecido quando homem, é que a tarefa seria perpetuamente impossível porque não era a fileira que estava em desalinho, quem estava em desalinho era eu. Ao tentar consertar aquela coluna, tentava consertar a mim.
O tapa salvador que me fazia retornar e me coadunar com o mundo imperfeito, não era nada mais do que aceitação de que os desejos nunca se perfilariam totalmente à realidade. Como criança, pura e ainda inafetada pelas vilezas da vida, abraçava a existência como podia e deveria. Como uma doce carreata de brinquedos que jamais se ajustará e que tal tarefa precisará ser feita dentro de nós.
Isso é aceitação.





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