
O duplo - um pequeno conto de horror
- HP Charles

- 20 de jul. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de jun.
Acordo de madrugada. São 3:10 da manhã. Sinto algo se mexendo na cama. O quarto está totalmente vedado e meus olhos tentam se adaptar à escuridão. Olho então para o lado e vejo minha esposa Aileen sentada rigidamente, com os pés para fora do leito. A chamo pelo nome e sem responder ela se deita novamente, mas de forma invertida. Procuro não pensar naquilo, tenho uma reunião muito cedo e durmo novamente. A caminho do escritório fico elocubrando que diabos teria acontecido.
Retorno por volta das 8 da noite e como trago algumas compras, entro pela cozinha. Escuto Aileen no telefone falando uma língua que não sabia que ela dominava. Estava casado há 10 anos e jamais a ouvira dizer uma só palavra naquele idioma.
Ao notar minha presença ela desligou e amavelmente perguntou como tinha sido meu dia. Ainda me recobrando da surpresa fui tomar banho sem saber se deveria abordar o assunto naquele momento.
São 2:45 da manhã e dessa vez acordo sobressaltado. Aileen está em pé ao meu lado olhando vitreamente para o alto, a luz do stand by da tv me deixa ver seu vulto. "Aileen", o que está acontecendo, pergunto atônito?"
Acredito que já saberia se ela fosse sonâmbula. Não, aquilo era um fato novo. Ela então se desloca para o outro lado da cama e se deita novamente ao contrário, com os pés para minha cabeça. Atribuo aquilo tudo a meus roncos e a um episódio esporádico de um sono mais profundo.
O dia seguinte se passa sem altercações.
No quarto dia chego bem tarde do escritório, adentro pelo apartamento, deixo minha pasta na sala de tv e noto uma fresta de luz pela porta da cozinha, que se encontra fechada. Abro a porta e Aileen está de pijamas com a geladeira aberta e com um pedaço de filé cru na mão. Imediatamente pergunto: "que merda é essa, Aileen"?
Ela então se vira pra mim e mostra a boca suja de sangue, sorri calada e caminha em direção à suíte. Evidentemente fico aterrorizado, sempre critiquei o fato dela preferir comer carne quase torrada, e agora via aquela cena assustadora.
Deitei na sala de televisão e dormi ali mesmo vendo alguma bobagem. No dia seguinte tive uma série de audiências em sequência mas não consegui me desvencilhar da cena grotesca que vira na noite anterior.
Chego em casa e Aileen já estava recolhida. Noto que o cachorro raspa a pata na porta do escritório. Resolvo investigar o motivo. Me deparo então com várias cartas de tarot no chão junto com um pote de pipocas. Minha garrafa de Jack Daniels está junto às cartas e consumida até a metade. Aileen não bebe, nunca bebeu.
Percebo seu Moleskine aberto onde está escrito: "a cada 10 anos ele retorna. Carpe noctem. Não há salvação".
Fico gelado. Meus braços ficam imediatamente arrepiados. O que está acontecendo?! Paro alguns segundos para tentar adequar aquilo tudo a meu ceticismo em uma vã procura por uma explicação racional.
Na suíte Aileen dorme tranquila, mas sempre com os pés para a cabeceira da cama. O quadro todo é absurdamente pertubador e decido que vou conversar com ela sobre os acontecimentos logo pela manhã.
O dia não raiou e acordo sonado com Aileen sentada em cima de mim. Ela faz bruscos e repetidos movimentos pélvicos até gozar com um gemido final. Se vira então e tomba exausta para o outro lado da cama com os pés na direção de meu rosto.
Em que terrível mistério fui envolvido naquela última semana? O que representaria aquela súbita mudança jamais demonstrada em toda a nossa relação? Sempre me causou estranheza eu jamais ter ouvido mais do que algumas raras frases sobre seu último relacionamento, apesar de também ter chegado aos 10 anos.
Reminescências são absolutamente naturais e eu mesmo, com algum cuidado, sempre falei de meus antigos namoros, vez que existiram e nada havia a esconder.
No dia seguinte sentei com Aileen contei o que estava presenciando e deixei claras minhas preocupações. Ela de pronto me respondeu que achava que tudo aquilo era fruto da medicação que estava tomando somada a alguma alteração hormonal oriunda talvez da menopausa.
Disse que ela deveria imediatamente procurar um médico. Ela garantiu que iria e saiu apressada para a academia. Imediatamente fui para o computador e passei a procurar em nossas troca de emails mais antigas algo que pudesse me trazer uma luz sobre o início de nossa relação há 10 anos. Tudo que encontrei foi o nome de seu antigo namorado.
Munido dessa única informação procurei um amigo de infância que era policial civil para ver se escavava algo. Dois dias depois, Toledo me liga e conta que há pouco mais de 10 anos uma pessoa com aquele nome havia se suicidado. Um jovem professor de francês. Sim, era ele mesmo.
Por que Aileen suprimiria tal informação? Por que jamais demonstrara algum pesar com aquela tragédia? Nada fazia sentido e se formava um quadro horripilante. Pressentia que novos 10 anos se fechavam e algo estaria para acontecer, mas comigo como protagonista.
Naquela noite não consegui dormir. Quem era realmente aquela pessoa a meu lado? Que segredos e intenções guardou durante uma década em silêncio? Eram 2:00 da manhã e eu olhava para o teto da sala de tv.
A porta de nosso quarto estava aberta no fim do corredor e os cachorros pareciam entranhamente agitados. Pressenti que algo aconteceria justo naquela noite.
Com o corpo em estado de atenção atravessei o corredor e adentrei no recinto onde dormíamos. A cama estava vazia e o quarto estava estranhamente frio. Muito mais frio do que o resto da casa.
Tento organizar meus pensamentos e lutar contra o medo e a escuridão. Nesse momento a porta do quarto se fecha fortemente e Aileen sai do banheiro da suíte. Suas feições estão alteradas, aquela coisa não é mais minha esposa. Duas enormes protuberâncias se pronunciam de sua testa como se fossem cornos. Sua pele estava mais pálida do que o usual. O pijama estava sujo e havia um odor de podre no ar.
Aileen mantinha as mãos em suas costas e percebi que segurava algum objeto. Fui andando para trás petrificado. Naquele ponto do quarto só havia a janela atrás de mim e estava no 13o andar.
Caminhando como se flutuasse, Aileen sorri de forma gutural e noto que ela empunha uma faca de chef. Ela grita e força um golpe contra meu plexo. Seguro seu braço com força, mas de forma supreendente a lâmina começa a se aproximar de meu peito. A pressão é sobrehumana e entendo o intento. Aileen em um movimento rápido esquece a faca e me empurra violentemente pela janela.
"Senhora, o que foi exatamente que aconteceu"?
"Uma grande catástrofe se abateu sobre meu marido, detetive. Há algum tempo ele tinha episódios fortes de depressão e os remédios o deixavam muito nervoso ao invés de acalmá-lo. Fiz tudo que podia, mas não tive forças para impedi-lo. Ele se suicidou. Espero que agora esteja em paz..."
O relógio volta ao início. A ampulheta é virada. 10 anos se iniciam. Em 10 anos ele retorna.
Carpe noctem.





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